Comer é um ato geográfico!

Inspirado no texto do “O Joio e o Trigo”

Ambientes alimentares: como o espaço em que vivemos molda o que comemos

O que você come todos os dias tem muito menos a ver com a sua vontade individual do que você imagina. O lugar onde você mora, os trajetos que percorre, os espaços que frequenta: da escola ao hospital, da feira ao supermercado, e até o celular que você segura agora, influenciam diretamente sua alimentação. É dessa reflexão que surge o conceito de ambiente alimentar, cada vez mais discutido por pesquisadores que relacionam comida, saúde e desigualdade social.

A falsa ideia de escolha individual

“O gosto classifica e, ao mesmo tempo, classifica quem classifica”, escreveu o sociólogo francês Pierre Bourdieu em A Distinção (1979). Para ele, nossas escolhas de consumo, inclusive alimentares, são moldadas por fatores sociais invisíveis, e não apenas por gostos pessoais. O ambiente alimentar funciona justamente como essa estrutura que limita ou possibilita escolhas.

O sociólogo da alimentação Claude Fischler reforça essa visão: “Comer é um ato social, não apenas biológico. O alimento é carregado de significados e práticas culturais” (L’Homnivore, 1990). Assim, quando falamos em ambiente alimentar, não falamos apenas da comida em si, mas de um sistema que envolve acesso, símbolos, publicidade e poder.

A engrenagem capitalista e seus paradoxos

No sistema alimentar global, a lógica do capital molda profundamente os ambientes em que nos alimentamos. O escritor americano Michael Pollan denuncia em Em Defesa da Comida (2008) que a indústria alimentícia não vende exatamente comida, mas “substâncias comestíveis, projetadas mais para a lucratividade do que para a nutrição”.

Esse cenário ajuda a entender fenômenos como os desertos alimentares, nos quais em áreas urbanas onde há uma escassez de alimentos frescos e saudáveis, mas abundância de ultraprocessados baratos. De acordo com estudo do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec, 2020), mais de 55% da população brasileira vive em áreas com maior acesso a ultraprocessados do que a alimentos in natura.

A desigualdade é central nesse debate. O economista Amartya Sen, Nobel de Economia em 1998, argumenta em Desenvolvimento como Liberdade que a fome não decorre apenas da falta de comida, mas da ausência de acesso justo: “Muitos passam fome não porque a comida não exista, mas porque não têm meios para obtê-la”.

O caso brasileiro e a classificação NOVA

No Brasil, o grupo de pesquisa NUPENS/USP, liderado por Carlos Monteiro, criou a classificação NOVA, que divide os alimentos segundo o grau de processamento. Os pesquisadores demonstraram que o aumento do consumo de ultraprocessados no país está associado a maiores índices de obesidade, hipertensão e diabetes. “O problema não é o que as pessoas querem comer, mas o que está disponível, promovido e acessível”, destaca Monteiro (NUPENS/USP, 2017).

Segundo dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF/IBGE, 2018), os ultraprocessados já representam 19,7% das calorias consumidas pelos brasileiros. Esse dado cresce ainda mais em famílias de baixa renda, justamente onde o ambiente alimentar oferece menos alternativas saudáveis.

Entre liberdade e captura dos desejos

A discussão vai além da saúde. O filósofo Byung-Chul Han provoca em Psicopolítica (2017): “O capitalismo atual não explora contra a vontade, mas através da vontade”. Ou seja, até mesmo os nossos desejos alimentares são moldados por algoritmos, propagandas e aplicativos de entrega que transformam escolhas em mercadorias dirigidas.

Pensar alimentação como política

A reflexão sobre ambientes alimentares mostra que a alimentação não é apenas um ato biológico, mas profundamente político e social. Questionar como esses ambientes se estruturam é essencial para promover políticas públicas mais inclusivas, garantir segurança alimentar e nutricional e enfrentar desigualdades.

No fim, a pergunta que permanece é: até que ponto nossas escolhas alimentares são realmente nossas?

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