O Paradoxo da fome na Amazônia: Por que a abundância não chega ao prato?

Texto inspirado em “Amazônia Latitude: ciência e jornalismo pela floresta”

A Amazônia evoca imagens de abundância. Uma imensidão de biodiversidade, sementes, rios e vida pulsante. É a terra das comunidades tradicionais, guardiãs de saberes ancestrais. No entanto, sob essa imagem de fartura, esconde-se uma contradição brutal: a fome. Este contraste não é um acaso da natureza, mas o resultado de uma trama política e econômica complexa. Ele nos obriga a fazer uma pergunta incômoda, mas necessária: até que ponto nossas escolhas alimentares são realmente nossas?

As estatísticas são um soco no estômago. No estado do Amazonas, quase 42,6% dos domicílios enfrentam algum nível de insegurança alimentar, segundo dados da POF/IBGE de 2023. Isso se traduz em cerca de 2 milhões de pessoas cujo acesso à comida não é garantido. Dentre elas, 113 mil vivem em situação gravíssima, incluindo crianças. O paradoxo se aprofunda quando olhamos para a zona rural da Amazônia, onde a produção de alimentos é mais tradicional. Ali, a insegurança atinge 47% dos lares. Nas áreas urbanas da região, o índice é de 38%, evidenciando que a proximidade com os centros comerciais não garante o alimento na mesa. Em escala nacional, os dados da PNAD Contínua de 2023 mostram que 27,6% dos lares brasileiros convivem com a mesma incerteza.

Quem vive na região sente o impacto direto de um sistema que privilegia o lucro sobre a vida. Márcia Oliveira, Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR) ,assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB) e da Cáritas Brasileira, é categórica ao afirmar que o avanço do capital financeiro "impede a circulação dos alimentos da floresta que historicamente eram de acesso coletivo". O que antes era partilhado, hoje é cercado e precificado. Flávio Barros, do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares (INEAF/UFPA), complementa essa visão, lembrando que a insegurança alimentar não é apenas sobre a falta de comida, mas sobre a qualidade dela. "É a região Norte do Brasil que tem o maior índice de insegurança alimentar do país. Essa insegurança não é medida apenas pelo fato de você comer ou não, mas principalmente pelo que você come".

A ironia é que a base da alimentação brasileira vem da agricultura familiar. Ela é responsável por 83% da mandioca, 70% do feijão e 46% do milho que consumimos. Na Amazônia, essa modalidade de agricultura é mais do que produção: é um pilar de subsistência, cultura e preservação ambiental. Como destaca a pesquisadora Letícia de Oliveira Furtado (em seu texto “Agricultura familiar e práticas agroecológicas na Amazônia: potenciais e desafios”) as práticas sustentáveis na agricultura familiar trazem impactos positivos para o meio ambiente e para a economia local. No entanto, essa força produtiva permanece invisível aos olhos das grandes políticas de desenvolvimento, que favorecem o agronegócio voltado para a exportação. Estudos mostram que a diversificação de atividades (a "pluriatividade"), combinando tarefas agrícolas e não agrícolas, aumenta significativamente a segurança alimentar das famílias rurais, pois melhora a renda e o acesso à educação. É a prova de que a resiliência vem da diversidade, não da monocultura.

A fome na Amazônia é um sintoma de problemas mais profundos. Por um lado, a Emergência Climática afeta mais da metade dos municípios da Amazônia Legal, os quais não têm infraestrutura para enfrentar eventos extremos como secas e enchentes, destrunido plantações e agravando a vulnerabilidade. Por outro lado, a Estrutura Fundiária Desigual, que se baseia na lógica histórica do "pouca gente com muita terra e muita gente com pouca terra", como descreve Dom Ionilton, continua expulsando quem cuida e vive da terra para dar lugar a projetos predatórios. Ademais, o Garimpo e o tráfico de drogas na região também corroboram para a piora do cenário Amazônico em frente à fome e ao acesso às águas.

Quando produtos da sociobiodiversidade amazônica, como o açaí, o cupuaçu e o jambu, ganham destaque em eventos globais como a COP30, eles abrem pequenas fissuras no sistema capitalista que historicamente os ignorou. É um gesto simbólico e poderoso, mas insuficiente se não vier acompanhado de políticas estruturais e da valorização dos nossos ingredientes locais. A pergunta que fica é: como criar um cenáro sustentável que nos permita entender que comida não é apenas uma mistura de ingredientes? Comida é território, memória, direito e resistência. Cada vez que escolhemos o que colocar no prato, estamos participando de um sistema. A consciência sobre a origem do nosso alimento e sobre quem o produz é o primeiro passo para exigir um modelo onde a abundância da natureza sirva, antes de tudo, para nutrir as pessoas e valorizar o patrimônio material e imaterial que permeiam a nossa região.

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