O Sabor Amargo do Crescimento: Crise de Mão de Obra, Precarização e o Futuro da Gastronomia no Brasil

O setor de Bares e Restaurantes no Brasil vive um paradoxo que ameaça seu próprio crescimento. Enquanto os números de faturamento e emprego indicam uma robusta recuperação econômica, os balcões e cozinhas de norte a sul do país ecoam a mesma queixa: a escassez crônica de mão de obra. Este "apagão" de talentos, no entanto, não é um mero desajuste de mercado, mas um sintoma de um problema mais profundo, enraizado na precarização, na "pejotização" e na erosão sistemática da qualificação técnica.

Os dados macroeconômicos pintam um cenário otimista. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua), o primeiro trimestre de 2025 registrou 4,758 milhões de trabalhadores no setor, um aumento de 1,6% em relação ao ano anterior. Além disso, o salário médio atingiu um pico histórico de R$2.222, conforme apuração da Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes). Contudo, a realidade para quem empreende é outra. Uma pesquisa da Abrasel revela a dimensão do desafio. Cerca de 90% dos empresários consideram difícil ou muito difícil contratar novos profissionais; 64% apontam a falta de qualificação técnica como o principal entrave; 61% queixam-se da simples ausência de candidatos interessados nas vagas. Esse descompasso entre a oferta de empregos e a disponibilidade de trabalhadores qualificados e dispostos sinaliza que o crescimento econômico, por si só, não é capaz de garantir a sustentabilidade do setor.

A crise de contratação é mais aguda em posições que exigem conhecimento técnico e experiência, como sushimans, churrasqueiros, chefs de cozinha e gerentes. "Mesmo com o aumento real dos salários, a contratação de profissionais segue sendo um desafio, especialmente nos cargos que exigem especialização", afirma Paulo Solmucci, presidente-executivo da Abrasel. Na tentativa de contornar o problema, o setor se torna uma porta de entrada massiva para o mercado de trabalho. Mais de 90% dos empregadores contratam pessoas sem experiência, investindo em treinamento interno por meio de consultorias. Embora louvável, essa estratégia gera um custo invisível e perverso: a alta rotatividade. O investimento em recrutamento, treinamento e adaptação é constante, drenando recursos que poderiam ser aplicados na melhoria do negócio.

Para frear essa sangria, as empresas recorrem a um arsenal de incentivos. Por exemplo: 51% oferecem premiação por desempenho; 40% investem em capacitação contínua; 39% ampliam a oferta de benefícios, como planos de saúde e vale-alimentação. 36% adequam salários, 26% flexibilizam horários e 22% fornecem transporte noturno, segundo dados da Abrasel. Se olharmos criticamente essas iniciativas à luz da Pirâmide de Maslow, percebe-se que a maioria delas responde apenas às necessidades mais básicas: salários e transporte se vinculam à sobrevivência; benefícios e treinamentos garantem uma sensação de segurança; premiações buscam atender à necessidade de pertencimento e reconhecimento.

No entanto, raramente o setor consegue oferecer condições que toquem o topo da pirâmide, a autorrealização. Em outras palavras, ainda que haja esforços para manter o colaborador motivado, muitos trabalhadores não enxergam no foodservice um espaço para construir carreira ou encontrar propósito. Essa distância entre incentivos imediatos e expectativas de longo prazo ajuda a explicar o chamado “apagão da mão de obra”: ao não oferecer caminhos claros para crescimento e realização profissional, bares e restaurantes acabam presos em uma lógica de alta rotatividade, que se retroalimenta e fragiliza ainda mais o setor.

Embora faltem estatísticas específicas para a gastronomia, a expansão da "pejotização", a contratação de indivíduos como Pessoa Jurídica (PJ) em vez de CLT, é um fenômeno amplamente documentado no setor de serviços brasileiro. Impulsionado por uma busca incessante pela redução de custos e "flexibilização" das relações de trabalho, esse modelo contraria a própria lógica da retenção de talentos. Ao transferir os riscos e custos (férias, 13º salário, FGTS, previdência) para o trabalhador, a "pejotização" fragiliza o vínculo empregatício e elimina a segurança que incentiva a permanência e o desenvolvimento de carreira.

O sociólogo Ricardo Antunes, professor da Unicamp e um dos principais estudiosos do trabalho no Brasil, fenômenos como este fazem parte de uma "nova morfologia do trabalho", onde a informalidade e a ausência de direitos se tornam a regra, e não a exceção, gerando uma força de trabalho permanentemente instável. A perspectiva de Graça Druck, socióloga da UFBA, complementa essa visão, afirmando que a terceirização (e, por extensão, a "pejotização") "acarreta precarização nas condições de trabalho, na saúde dos trabalhadores, no emprego e na organização coletiva". Para a gastronomia, um setor já conhecido por jornadas exaustivas e ambientes de alta pressão, esse modelo é a fórmula para o esgotamento profissional e o abandono da carreira.

A crise é retroalimentada pela retração no interesse e na oferta de formação técnica. Instituições de renome, como Senac e Senai, lutam para preencher turmas e não conseguem suprir a demanda do mercado. A baixa atratividade da carreira, percebida como mal remunerada e desgastante, afasta os jovens e cria um vácuo de qualificação. Sem um fluxo contínuo de novos profissionais bem formados, o setor fica refém do treinamento emergencial, o que, a longo prazo, nivela o conhecimento por baixo e compromete a qualidade e a inovação da gastronomia nacional.

O apagão de mão de obra na gastronomia não é uma crise isolada, é o reflexo agudo de um modelo de desenvolvimento que dissocia o crescimento do lucro da valorização do trabalho. A dificuldade em atrair e reter profissionais é a consequência direta de um sistema que prioriza a flexibilidade em detrimento dos direitos, o custo baixo em detrimento da formação e o lucro imediato em detrimento da dignidade humana. Enquanto a gastronomia for vista apenas como um negócio de margens apertadas e não como um ecossistema que depende vitalmente do capital humano, o setor continuará a servir um prato de faturamento positivo com um gosto amargo de instabilidade. A solução exige mais do que bônus e benefícios; requer um pacto setorial pela valorização profissional, políticas robustas de formação técnica e a reconstrução de vínculos trabalhistas que ofereçam segurança e perspectiva de futuro. Sem isso, o crescimento será sempre uma miragem em um deserto de talentos.

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